O legado de Cássia Eller
O disco 10 de Dezembro não deixa
dúvida: a música brasileira perdeu
uma grande intérprete
Sérgio Martins
Quando morreu, em dezembro de 2001, Cássia Eller estava
empenhada em realizar uma metamorfose artística. Cansada
do rótulo de roqueira barulhenta, ela queria consolidar
a imagem de excelente intérprete, o que de fato era. Para
isso, lançaria em 2002 um disco com canções
inéditas de Chico Buarque e Djavan, figuras consagradas
da MPB, e também de compositores jovens, como Lenine. O
CD póstumo 10 de Dezembro (o título é
a data de aniversário da cantora), que chega às
lojas na semana que vem, é fiel ao desejo de Cássia.
Ele traz onze faixas registradas pela artista em diferentes fases,
durante shows ou gravações informais. Na maioria
dos casos, só a voz e o violão originais foram preservados.
Transformar essas gravações precárias em
material audível não foi tarefa das mais fáceis.
Escolhido o repertório, o ex-empresário de Cássia,
Ronaldo Villas, e o músico Nando Reis, grande amigo da
artista e produtor do CD, passaram três meses no estúdio
e gastaram 150.000 reais para levá-lo a cabo. Eles recrutaram
integrantes da última banda de Cássia Eller para
refazer as partes instrumentais, convidaram o tecladista Lincoln
Olivetti para criar arranjos de cordas e reuniram uma série
de convidados, como Roberto Frejat, Gilberto Gil, Zélia
Duncan, João Barone e Bi Ribeiro, estes últimos
da banda Paralamas do Sucesso. Conseguiram bons resultados em
várias faixas. A versão de All Star, em
que uma orquestra acompanha Cássia, é desde logo
candidata a hit. Uma das especialidades da artista era traduzir
músicas da MPB para a geração rock, e é
isso que se ouve em Vila do Sossego, de Zé Ramalho,
e Eu Sou Neguinha, de Caetano Veloso. Podem-se destacar
ainda Get Back e Julia, duas covers dos Beatles
– um grupo adorado por Cássia, que tinha um caderno
apenas para anotar as letras de suas músicas.
O disco 10 de Dezembro será lançado com
uma tiragem inicial de 50.000 cópias. Os royalties pela
vendagem farão parte do espólio de Cássia
Eller, que ainda não tem um administrador designado pela
Justiça. Em outubro passado, uma decisão importante
foi tomada: Maria Eugênia Martins, companheira de Cássia
durante catorze anos, recebeu a guarda do filho da cantora, Francisco
Eller, o Chicão, hoje com 9 anos. Os dois ainda não
tiveram coragem de ouvir as músicas do novo disco. De certa
forma, continuam em luto. Para suportar a perda de Cássia
e reestruturar-se como família, estão frequentando
uma terapeuta. Durante as gravações, Maria Eugênia
chegou a visitar o estúdio onde elas estavam sendo feitas,
no Rio de Janeiro. Ficou poucos minutos e saiu sem tecer comentários.
Ronaldo Villas também convidou Chicão para acompanhar
uma sessão. No dia combinado, o menino teve uma febre repentina.
"No momento, ele prefere ficar longe da música da
mãe", diz Villas. Mesmo para aqueles que não
faziam parte da família de Cássia Eller, as gravações
de 10 de Dezembro tiveram momentos dolorosos. "Às
vezes, durante o trabalho, agíamos como se ela fosse entrar
no estúdio a qualquer instante. Era sempre um choque voltar
à realidade", lembra Roberto Frejat.